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Um novo senso-comum parece estabelecer-se: uma certa "nova direita", oriunda da "velha esquerda", emite, a partir dos lugares de poder que agora ocupa, pareceres negativos sobre as tentativas de democratização das nossas sociedades. Um dos alvos favoritos tem sido o "multiculturalismo". Mas trata-se de demagogia, pois o parecer negativo é emitido na base da omissão completa dos antecedentes (nacionalistas, racistas, etc.) contra os quais o multiculturalismo foi promovido. Todavia, a esquerda tão-pouco pode subscrever acriticamente chavões (como "multiculturalismo") sem proceder a uma avaliação dos seus potenciais e limites. É por aqui que pretendo ir, num texto (ironicamente?) escrito no dia da independância de Timor-Leste.
O século XIX europeu - prolongando-se pelo XX - foi o século do surgimento do Estado-Nação tal como o conhecemos hoje. É recente a ideia de que a forma ideal de organização política, social e cultural seja a da correspondência entre um território, o exercício da soberania por um estado, uma língua nacional, e um povo. Sabemos hoje como a criação do Estado-Nação foi feita na base de violências reais e simbólicas, de exclusão do Outro e de invenção do Mesmo.
Sabemos também que esse processo foi contemporâneo, para algumas nações europeias, da construção dos grandes impérios coloniais. O empreendimento colonialista e o nacionalismo dos séculos XIX-XX partilhavam características e participavam da mesma lógica: se cada Estado se definia como o apuramento político de uma suposta civilização étnica e linguisticamente definida, as suas colónias seriam o lugar de confirmação de uma suposta vocação civilizadora, correspondente ao "espírito" ou "génio" supostamente contido no carácter nacional do colonizador. Mas a colónia foi também o lugar da invenção, verificação e aplicação dos conceitos que permitiam legitimar o estado-nação e colocá-lo no topo de uma linha de evolução histórica.
Se, por um lado, o Estado-Nação permitia conceber uma ideia de "comunidade" que elidia as diferenças e desigualdades internas (de género, de classe, de região, etc.), a Colónia, por outro, assegurava a ordem "natural" de uma desigualdade hierárquica, implícita na ideia de que alguns povos ou nações seriam superiores e teriam a obrigação de tutelar os outros, inferiores. Nacionalismo e colonialismo alimentaram-se mutuamente e foi assim que se construíram as comunidades - agora instáveis e contestadas - em que vivemos pelo século XX fora. E que agora se encontram em plena crise.
Nos interstícios dessa organização, havia os grupos que se encontravam em situação de diáspora. Judeus e Arménios, mal ou bem integrados nas sociedades europeias de acolhimento, sentiram, como criaturas do Novecentos, a falta do seu estado-nação. A forma de se legitimarem e de serem legitimados como diferentes dentro das unidades nacionais onde viviam, fez com que as suas terras de origem fossem construídas imaginariamente como os estados-nação perdidos e a reconstruir. A sua alteridade no seio dos estados europeus - ou dos estados americanos feitos à imagem e semelhança do nacionalismo europeu pelas elites locais - não era semelhante à alteridade dos colonizados. Eram, por assim dizer, europeus ou brancos honorários. Ser membro de uma diáspora não era o mesmo que ser e/imigrante hoje, ou colonizado há cinquenta anos atrás.
Por causa do pensamento evolucionista e etnocêntrico, nem sequer todas as diásporas eram (ou são) vistas como iguais. Pensemos como duas outras grandes diásporas não foram, decididamente, consideradas como tal: refiro-me aos ciganos e aos africanos, ambos saídos das suas terras de origem há muito tempo, mas ambos impedidos de acederem ao estatuto diaspórico. Tal aconteceu, no caso dos ciganos, por não terem sido integrados na ordem burguesa do sedentarismo e do exercício corporativo de profissões, tendo-lhes mesmo sido recusado o acesso à nacionalidade em muitos contextos e épocas; no caso dos africanos, por terem sido retirados da sua origem por um processo violento, a escravatura, cuja responsabilidade foi sobretudo europeia. E, no limite, por causa das classificações raciais.
Façamos um parêntese: porque me é simpática, apesar de tudo, a noção de diáspora? Justamente porque ela é contraditória com a ideia de estado-nação. Ela permite, pelo menos teoricamente, considerar como possível a existência de afinidades culturais humanas que transpõem as fronteiras e a organização dos Estados; afinidades essas que se constroem num sistema globalizado, transnacional e intrinsecamente cosmopolita e anti-paroquial. O potencial diaspórico foi, infelizmente, perdido, com a sanha nacionalista e colonial: o sionismo está aí para comprová-lo, assim como a debilidade dos pequenos grupos de judeus que se definem como diaspóricos e não-sionistas.
Regressemos agora às semelhanças - ou à mútua constituição - da coisa colonial e da coisa nacional. A maior semelhança encontra-se no campo das representações sobre a cultura e a sociedade. As noções de "povo", "etnia" e "raça" são constituídas nesse universo. As raças serviram para diferenciar entre colonizadores e colonizados; os povos ou nações para diferenciar unidades nacionais supostamente imemoriais no seio da diversidade europeia; e as etnias, para conferir um conceito mais universal que abrangesse as diferenças entre grupos endogâmicos, distinguidos sobretudo pelo critério linguístico - quer fossem europeus, quer extra-europeus.
Ainda pensamos segundo este modelo. Mas este modelo está em crise. Como e porquê? Em primeiro lugar, porque a "coisa" nacional implodiu com o advento do nazi-fascismo e o ponto extremo a que as teorias raciais e nacionais chegaram. Em segundo lugar, porque a coisa "colonial" explodiu após o fim do colonialismo como projecto e instituição. Por fim, os processos nacionalistas de descolonização criaram uma realidade algo mistificada em que, por um lado, as nações colonizadoras europeias ficaram supostamente reduzidas à sua expressão territorial e étnica de origem; e, por outro, as ex-colónias passaram, também mistificadamente, a estados-nação segundo a modalidade europeia. São duas falácias que têm tido consequências terríveis. No caso das ex-colónias, como se sabe, os territórios delimitados a régua e esquadro pelos europeus cortam linhas de diferenciação étnica (muitas das quais, de qualquer modo, haviam sido criadas ou exacerbadas pelas administrações coloniais). No caso europeu, o suposto regresso às fronteiras históricas não foi regresso algum: por um lado porque na época colonial se fazia questão em distinguir muito bem o que era um nacional e o que era um colonizado; por outro, porque as sociedades europeias do pós-guerra vão ver a sua estrutura social consideravelmente alterada pelas correntes de imigração das ex-colónias. O sistema colonial deu lugar a um sistema internacional de que conhecemos os contornos: a criação do subdesenvolvimento segundo a linha divisória entre o primeiro e terceiro mundo, e o surgimento inesperado de sociedades multiculturais na Europa baseadas em desigualdades sociais profundas entre nacionais e imigrantes.
O imigrante é representado, nas sociedades de acolhimento, como alguém que intrinsecamente não lhe pertence. E como alguém que, em vez de ter uma terra de origem que não pode já recuperar (como seria o caso de uma diáspora tradicional), tem uma terra de origem à qual deve retornar mais tarde ou mais cedo - segundo os cânones do pensamento do estado-nação. Do ponto de vista simétrico, o do emigrante, ele constrói a sua identidade como a de alguém que está de passagem no país de acolhimento, mas quer ou deve voltar um dia para o país de origem. Ambos são "vítimas" do mesmo sistema, isto é, ambos pensam em termos de origem e chegada, local legítimo e local ilegítimo. Porque as suas identidades foram ambas historicamente construídas pelos discursos e práticas do nacionalismo e do colonialismo.
Referi acima que este modelo entrou em crise profunda. Alguns teóricos têm denominado essa crise pelo termo pós-colonial. Eu preferiria que se chamasse também pós-nacional. Que traços identificam essa crise? Em primeiro lugar, a desilusão sentida, sobretudo nos países saídos dos processos de descolonização, com as ilusões do crescimento e desenvolvimento modernizadores que não aconteceram; desilusão com a construção de estados-nação que não aconteceram, antes se tranformaram em barris de pólvora de conflitos fratricidas; desilusão com as utopias socialistas de construção de uma ordem igualitária e internacionalista. Em segundo lugar, a desilusão sentida nas nações europeias ex-colonizadoras: o estado-nação deixou de ser o lugar de chegada da acumulação ou o lugar de origem da produção, devido à globalização financeira, à deslocalização dos processos produtivos e à necessidade de fluxos migratórios de mão-de-obra.
Curiosamente - e talvez paradoxalmente - a reacção mais flagrante a estas incomodidades tem sido, ainda, o renascimento do nacionalismo e do modelo do estado-nação. Basta olhar para a Europa pós-queda do muro de Berlim; basta olhar para os processos de desagregação dos estados africanos e outros. Mas este desespero nacionalista é isso mesmo: desespero e já não força impulsionadora e até, por vezes, progressista (como foi no início da unificação da Itália ou dos movimentos anti-coloniais). Ele acontece no momento em que os processos de mundialização se tornaram irreversíveis; em que é difícil colocar entraves ou regulações nacionais à globalização; em que os fluxos de migração são imparáveis e as realidades sócio-culturais por eles criadas ganharam raízes inextricáveis. Em suma: a única forma de dar a volta aos problemas poderá ser através da regulação internacional da globalização (nomeadamente dos negócios financeiros), do desenvolvimento dos países sub-desenvolvidos, e da criação de uma ordem política de cidadania genuinamente multicultural.
O impulso no sentido do multiculturalismo encontra alguns dos seus melhores defensores entre membros das diásporas. Desde logo, entre grupos e estratos muito específicos: aqueles constituídos por pessoas que são, como diria Salman Rushdie, "irremediavelmente traduzidas": aquelas pessoas ou grupos que vivem em circuitos internacionais, partilhando de duas ou mais culturas, ou que são o resultado de identidades culturais híbridas, produzidas a partir da cultura de origem dos antepassados e da cultura de chegada à qual se sentem pertencer de pleno direito. Esta consciência de identidade múltipla e intersticial é flagrante entre as elites letradas e certos grupos sócio-profissionais em que as pessoas são claramente confrontadas com requisitos culturais diferentes, por vezes contraditórios entre si. Não será por acaso que um discurso sobre a diáspora e as identidades de fronteira, "in-between", como lhes chama Homi Bhabha, surge no campo dos estudos literários e entre os próprios escritores e intelectuais, sobretudo em dois grandes "grupos": Anglo-Indianos e Anglo-Afro-Caribenhos vivendo em sociedades cosmopolitas e pós-imperiais como Londres.
Mas se um conceito como diáspora surge agora sem ser em referência às diásporas históricas de judeus e arménios, o que é que ele substitui, a que é que se opõe, ou de que é que se diferencia? Conseguimos encontrar dois termos com equivalente valor de circulação no mundo contemporâneo: imigrantes/emigrantes e minorias étnicas. A razão por que "migrante" não é a palavra querida dos actuais discursos sobre as realidades transculturais, é que ela está marcada pelo factor sócio-económico e de classe. No senso comum, e não só, o migrante é aquele que sai do seu país por aí não encontrar condições de subsistência e se dirige a outro país onde as encontra. Ele não é visto como expatriado ou exilado cultural.
No país de origem ele é visto de duas maneiras, consoante o lugar ocupado na escala social pelo observador: pelos seus pares é visto como alguém que conseguiu transcender as adversidades, sendo as suas remessas monetárias apreciadas e o seu regresso admirado no que tem de manifestação de ascensão social; pelos seus ascendentes sociais é visto como um desaculturado ou um "novo rico" que, no país de acolhimento, transmite uma imagem "errada" (porque popular e subalterna) da cultura nacional definida pelas elites e, no regresso, se apresenta como novo rico ou híbrido no sentido derrogatório da palavra. No país de acolhimento, ele é simultaneamente a mão-de-obra necessária para as tarefas desprestigiantes, e o Outro por excelência, que não consegue integrar-se, que transporta consigo hábitos "bárbaros", que é um perigo potencial para a ordem social e, em última instância, o alvo da xenofobia, o bode expiatório das tensões sociais. Retenhamos isto: a categoria migrante está marcada simultaneamente pela subalternidade e pela ameaça da desordem.
Esta interpretação pretende tornar mais complexa a análise, deslocando-a do mero campo da diferença nacional e étnica, para o campo da desigualdade económica e de classe. Mas falta uma dimensão analítica importante: o tempo. O migrante do meu exemplo é o migrante que, no seu tempo de vida individual, sai da origem para o país de acolhimento e regressa ao país de origem, cumprindo a sua função na economia internacional. Que acontece, todavia, se ele ficar no país de acolhimento? Que acontece se ele tiver filhos no país de acolhimento e estes ficarem, e assim sucessivamente? Temos, então, a terceira categoria com que temos que lidar aqui - a de minoria étnica.
É certo que há minorias étnicas que nada têm a ver com as migrações. Precisamente porque o estado-nação a que antes me referia se construiu a ferro e fogo, nunca conseguiu estabelecer com perfeição a pureza etnolinguística, guardando dentro de si bolsas de diferença que, por inspiração no próprio modelo hegemónico do estado-nação, se cristalizaram e radicalizaram como identidades minoritárias (basta pensarmos nos casos Catalão e Basco no Estado Espanhol). Mas as minorias étnicas a que me refiro têm, por causa do factor tempo, uma característica que as torna mais frágeis: o período da sua chegada é conhecido e recente (pós-colonial), assim como as razões por que chegaram também (subalternidade sócio-económica), as actividades em que se engajaram (as mais desprestigiadas), os espaços que ocuparam (as margens). Mas talvez o marcador mais flagrante da minoria étnica seja, hoje, a raça, subsumindo cultura, língua e/ou religião.
Esse terrível conceito é o filho dilecto do colonialismo. Aquilo a que se assiste hoje, sobretudo na Europa, é ao regresso das características excludentes e naturalizantes do racismo, mas com uma alteração de designação devida ao opróbio a que a expressão "raça" foi votada no pós-guerra. Agora usa-se "etnia" e mesmo "cultura" para os mesmos fins. As situações coloniais - e, hoje, as situações pós-coloniais nas ex-metrópoles - são espaços e tempos em que populações diferenciadas por segmentações de desigualdade convivem lado a lado. Nada de novo, até certo ponto, pois qualquer sociedade é segmentada por diferenças e desigualdades. Mas algo de novo, porém: trata-se de novas segmentações, caracterizáveis por "novos" critérios: a mistura entre os critérios da diferença étnica e "racial" e os critérios da desigualdade económica e social. Se um patrão e um operário tinham já estabelecido um "protocolo" para conflitos e negociações, um nacional e um estrangeiro estão ainda a construi-los - e o único "protocolo" a que podem recorrer, já estabelecido, é o herdado da relação colonial. Se a situação colonial, pela sua natureza de ocupação, estabelecia as regras da separação - implícitas ou explícitas e num largo espectro, desde a retórica multiracial do colonialismo tardio português até ao apartheid sul-africano - a situação pós-colonial nas urbes industrializadas modernas não o consegue fazer. Aceita ou o gueto ou a assimilação plena. Não aceita o meio termo ou a transcendência daquela dicotomia. Aceita a aculturação ou o separatismo. E isto tanto da parte das populações e instituições dos países de acolhimento, quanto da parte dos membros das minorias étnicas. O que não parece ser aceite é a transculturação, a condição "traduzida", cosmopolita, "in-between". Infelizmente.
A "contaminação" - o fim dos puros, o nascimento dos híbridos - dá-se em dois sentidos. Num deles, produtos culturais do imigrante/minoria étnica/diásporas contaminam a sociedade de acolhimento: comida, música, dança, estão na linha da frente, e não por acaso, pois entram pela porta do corpo e dos sentidos, não pela da racionalidade e da ordem social. No outro, as instituições e leis da sociedade de acolhimento contaminam os grupos chegados de fora. Este último sentido é, obviamente (mas ao contrário do que o pensamento xenófobo crê) mais forte e complexo: vai da repressão policial até à cultura dos direitos humanos e de cidadania; vai da exploração no trabalho, até aos benefícios de segurança social; vai dos discursos racistas até à exposição ao pensamento crítico (quantos movimentos anticoloniais não foram gerados nas metrópoles, por coloniais que frequentavam as universidades ocidentais?).
Mas este quadro tem que ser tornado mais complexo se não queremos subscrever uma teoria da cultura que vê esta como uma coisa estanque, propriedade de um grupo discreto. É que os grupos de migrantes/minorias/diásporas são socialmente diversificados, assim como as sociedades de acolhimento. Isto por um lado. E as realidades culturais nas sociedades urbanas de hoje não são diádicas, isto é, compostas por hóspedes e anfitriões, mas sim por vários tipos de hóspedes (e vários tipos de anfitriões...) e por populações das mais variadas origens que pela primeira vez se encontram.
Em relação ao primeiro aspecto: um determinado grupo étnico numa grande cidade europeia, por exemplo, é, desde logo, constituído por homens e mulheres, portanto por relações desiguais de género; é constituído por migrantes económicos e por diaspóricos, isto é, pelos migrantes culturais a que me referi (quadros, intelectuais, refugiados políticos, etc), portanto por relações sociais de classe e estatuto desiguais; por fim, é constituído por grupos etários diferentes, correspondendo neste caso a períodos de chegada diversos, portanto por relações geracionais desiguais. Quanto ao segundo aspecto, entramos numa das áreas mais discutíveis: a que estipula que a sociedade ocidental é simultaneamente a inventora do racismo científico e do Holocausto, por um lado, e da ideia de direitos humanos universais e de cidadania, por outro. Sendo assim, o lugar de imigração, é o lugar por excelência da exploração da mão-de-obra imigrante e o lugar por excelência da obtenção da cidadania. São, aliás, estas contradições do Ocidente que permitem aceitar - ao contrário do que o relativismo moral diz - a universalidade de aspectos como os Direitos Humanos e a sua apropriação/reivindicação pelas comunidades imigrantes - no país de acolhimento e em "casa"1
.Dos encontros e desencontros resultou uma realidade irreversível: a de que o estado-nação puro falhou e que alguma forma de multiculturalismo veio para ficar. O primeiro modelo é o da resistência/ressurgimento do estado nação, ou nacionalista, em toda a sua pureza. Assemelha-se a um fundamentalismo: procura no presente actualizar um passado que nunca existiu, como reacção a um presente que se apresenta irremediavelmente Outro. O modelo prescreve a unicidade linguística e religiosa, a distinção entre nacionais e estrangeiros com base no direito de sangue, a imigração temporária com visto de trabalho caducável mas sem possibilidade de residência, reagrupamento familiar ou exercício de cidadania.
O segundo modelo é o do que poderíamos chamar multiculturalismo essencialista. Na realidade corresponde a uma variedade de sub-modelos: o da distinção entre nacionais e estrangeiros desfasada por gerações, como quando se aplica o direito de solo para dar nacionalidade a uma criança nascida no país de acolhimento; o da acentuação da diferença cultural mas em coexistência cidadã, como na Holanda, em que apesar do usufruto da cidadania, o Estado promove a identidade cultural específica dos grupos estrangeiros, marcando assim perversamente uma diferença constitutiva das identidades pessoais e grupais; ou o da acentuação da cidadania nacional integradora e assimilacionista, pressupondo o multiculturalismo como transitório.
O terceiro modelo é o que está para vir: o do multiculturalismo pleno, ou, como eu preferiria chamar-lhe, da cidadania cosmopolita, em que "multiculturalismo" já nem seria uma expressão necessária.
O multiculturalismo é um conceito complicado devido à sua ambiguidade política e à manipulação retórica a que se presta. Não precisamos de ir muito longe: ele pode ser mero recurso retórico, como o foi no período final do colonialismo português; ou pode ser justificativo de formas de exclusão: o apartheid baseava-se em grande medida na teorização de uma diferença cultural irredutível e na defesa dessas diferenças (o que é no mínimo irónico: ouvir falar do direito à diferença como um dever e como a base para a desigualdade...). O problema, claro está, reside no conceito de cultura que é utilizado nestes sistemas, e que é o conceito ainda hoje vigente no senso comum e o mesmo que esteve na base da criação dos projectos coloniais e de estados-nação: a cultura como conjunto de atributos essencializados (como se naturais, sem consideração do processo histórico, da interculturalidade e das diversidade interna de qualquer grupo) de um população específica, com uma geografia delimitável. Em suma, a cultura como uma coisa. Ora, se esta concepção objectificadora de cultura serve, sobretudo, para excluir e impedir a contaminação, ela serve também para os excluídos se autoconstituirem como grupos e reivindicarem direitos graças à aceitação desse conceito por parte de quem os exclui. Por isso as identidades étnicas e raciais e, no extremo, os nacionalismos e os fundamentalismos, são estratégicos: em certas conjunturas são mesmo a única forma de se reagir e negociar.
Um dos resultados desta realidade de objectificação da cultura é a sua mercadorização. Nos contextos ditos pluriétnicos, o multiculturalismo não é mais do que o estabelecimento de um supermercado de culturas, competindo a cada uma o provimento de uma determinada mercadoria: música africana, comida chinesa, espiritualismo oriental, cultura pop americana, etc. Os próprios membros dos grupos minoritários marginalizados recorrem, naturalmente, à mercadorização como forma de construção de identidade e de ocupação de nichos na sociedade "multicultural". Quando desistem da reprodução dessas expectativas, deixam de ser vistos como membros da cultura x e passam a ser vistos como aculturados ou - com a passagem das gerações - como membros da cultura y.
Existe alternativa a este binómio separação / aculturação? Eu creio que sim, mas para tal é necessário sair da análise social e entrar na política. Creio que existem projectos possíveis com base no que de bom temos, e existem indícios do que as coisas podem vir a ser. Quanto aos primeiros: em primeiro lugar a cidadania individualizada. Em segundo lugar o relativismo cultural. Em terceiro lugar a diversidade como valor. Quanto aos segundos: as figuras irremediavelmente traduzidas e os seus produtos culturais - as crioulidades. Para que tal projecto seja possível e tais indícios sejam multiplicados, é preciso ser muito crítico de algumas verdades feitas e prosseguir algumas velhas lutas. As verdades feitas são a noção de cultura como coisa e essência herdada do estado-nação e do colonialismo; a confusão entre relativismo cultural e relativismo ético; e a ideia de unicidade cultural ou da cultura como descritor autónomo, isto é, há que reconhecer e trabalhar as clivagens de género, geração e classe dentro de uma qualquer categoria descritiva. As velhas lutas a prosseguir são as que têm a ver com o desenvolvimento sustentado, a introdução de mecanismos de justiça e redistribuição na economia globalizada, e a pedagogia anti-racista. A isto deveríamos acrescentar novas lutas: as que têm a ver com a desigualdade e as relações de classe não podem mais passar pela divisão entre nacionais e imigrantes (como é corrente acontecer no sindicalismo), ou entre nacionais e estrangeiros nas relações de género (como se liga a condição feminina da imigrante à da nacional?) e destes níveis entre si.
O projecto de cidadania cosmopolita será trabalho das gerações que aí vêm. Mas, obviamente, só poderá sê-lo por parte dos sectores mais desprivilegiados das imigrações / minorias / diásporas se, primeiro ou em simultâneo, os seus direitos básicos forem garantidos: direitos de trabalho, acesso ao estado-providência, e direitos cívicos, na base de uma premissa simples: quem trabalha e habita num determinado território é membro de pleno direito da comunidade - cortando assim as amarras perversas ao velho estado-nação e à experiência colonial.